"Feel Good Hit of the Summer"
Nicotine, valium, vicodin, marijuana, ecstasy and alcohol.
Cocaine.
Pela janela, através da cortina solarenga, vejo-os
diariamente
a pedir alojamento na clínica de reabilitação. Os seus
andares são automatizados como se o exército
de Terracota finalmente ganhasse vida. Enfileirados,
rostos carvoeiros
geralmente iluminados por um cigarro intermitente. Roupas
gastas a condizerem
com a vida que levaram
até ali. Todos
os dias, sem excepção, observo-os
a darem os poucos documentos que lhe restam
para admissão. Entram
pelo portão principal
com a esperança inequívoca
que à saída vão trazer
alguém renascido a disfarçar-se
nos seus velhos corpos sacudidos incansavelmente
pela estadia.
Até aqui coloquei a cabeça do poema
no cepo. Cortei-a com a frieza necessária, os restantes
versos são o trajecto que ela percorreu
a rolar pelo poema
abaixo.
Obcecado para ver o que faziam dentro
daquelas
imponentes paredes
demorei uma semana a vestir a pele de todos
os adictos que consegui: álcool,
químicos, sexo, pornografia,
uma depressão profunda, anorexia, enfim,
apodreci o exterior
e escureci o interior até ser parte
da centopeia delirante
pela cura.
Os viciados têm direito a um kit para a estadia: um lençol,
um edredão, uma fronha,
duas toalhas; itens para se fazer a cama onde a noite
é passada entre uivos a chamarem a vida
passada. Os terapeutas saem às dezassete horas em ponto,
talvez pensando que a noite
não move crises, ataques,
recaídas, mortes (e esta sala cheira a morte). Mariana de olhos
mortiços, vestida de pijama todo o dia, parecendo
ter abdicado da vida há semanas, ameaçou
matar-se se não saísse dali, se não fosse para casa,
se não fosse para o colo
da mãe. Estava na cozinha quando pegou numa faca
reluzente, brilhante no escuro, afiada como a sua ideia
de se matar. Não conseguiu, as veias ferventes
permaneceram intactas.
Na sala de estar não se pode andar de tronco nu, a radiação
do vício permanece encarcerada
entre vestes, num joguete
não muito amigável entre quem sofre
e o sofrimento.
Prostrada e encostada à costura da vida
à espera que languidamente as casas no corpo
fossem abertas, como uma costureira
abre casas para os botões. Sertralina, Morfex,
Seroquel, Victan fazem
Ana não rir
nem chorar, nem querer, nem parir,
nem foder, nem morrer
ou viver. Sobreviver. Estátua de cal branca
numa asfixia evidente.
Há uma solidariedade entre os que estão, nota-se
alguns a servirem de trave-mestra a outros
mais viciados, mais frágeis, ou mais fracos. Tristes
espectáculos sem público, doentes marionetas
com os cordelinhos puxados por um estado
fóssil
de si mesmos.
Falam pouco, falámos quase nada, diálogos
contra vontade e quase contranatura. Conversas
de nove minutos no jardim
ou no alpendre,
para exorcizar o estado que se deita connosco
e acorda,
normalmente,
atiçado. Histórias pungentes que deixaram
o espiritualismo na soleira da porta.
Quando alguém me apresentou José
por Sr. Toxicodependente, nunca lhe imaginei
os vícios no sexo e pornografia. Uma vida
alucinada em chão de esperma, traficada
entre vaginas disponíveis ao sexo
com travo a haxixe ou sexo visto na televisão, sem protagonistas,
guiões ou óscares,
apenas carne
a faiscar contra carne. Horas e horas do mesmo, dias
e dias a ver cenas idênticas, ejaculações
semelhantes sem nunca chegar
aos créditos finais. Escapes (felizmente que o espiritualismo
ficou na soleira da porta) que o mandariam
directamente para o inferno. Enviariam? Será que já
não está lá? Privado do seu corpo
lucífero, quente, sempre
disponível para mais uma, sempre só mais
uma dose de vício em estado latente.
As sombras são cada vez maiores, mais quarenta
e três pessoas que não fazem ou fazem algo em demasia. Gelado
e estreito, ergo-me uma última vez para sair, regressar à minha
janela. Agora não quero ver mais ninguém a entrar, pois
sei o quão difícil é aguentar-me
à saída.
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pedro s. martins
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