sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Vício

"Feel Good Hit of the Summer"

Nicotine, valium, vicodin, marijuana, ecstasy and alcohol.
Cocaine.



Pela janela, através da cortina solarenga, vejo-os

diariamente

a pedir alojamento na clínica de reabilitação. Os seus

andares são automatizados como se o exército

de Terracota finalmente ganhasse vida. Enfileirados,

rostos carvoeiros

geralmente iluminados por um cigarro intermitente. Roupas

gastas a condizerem

com a vida que levaram

até ali. Todos

os dias, sem excepção, observo-os

a darem os poucos documentos que lhe restam

para admissão. Entram

pelo portão principal

com a esperança inequívoca

que à saída vão trazer

alguém renascido a disfarçar-se

nos seus velhos corpos sacudidos incansavelmente

pela estadia.


Até aqui coloquei a cabeça do poema

no cepo. Cortei-a com a frieza necessária, os restantes

versos são o trajecto que ela percorreu

a rolar pelo poema

abaixo.


Obcecado para ver o que faziam dentro

daquelas

imponentes paredes

demorei uma semana a vestir a pele de todos

os adictos que consegui: álcool,

químicos, sexo, pornografia,

uma depressão profunda, anorexia, enfim,

apodreci o exterior

e escureci o interior até ser parte

da centopeia delirante

pela cura.


Os viciados têm direito a um kit para a estadia: um lençol,

um edredão, uma fronha,

duas toalhas; itens para se fazer a cama onde a noite

é passada entre uivos a chamarem a vida

passada. Os terapeutas saem às dezassete horas em ponto,

talvez pensando que a noite

não move crises, ataques,

recaídas, mortes (e esta sala cheira a morte). Mariana de olhos

mortiços, vestida de pijama todo o dia, parecendo

ter abdicado da vida há semanas, ameaçou

matar-se se não saísse dali, se não fosse para casa,

se não fosse para o colo

da mãe. Estava na cozinha quando pegou numa faca

reluzente, brilhante no escuro, afiada como a sua ideia

de se matar. Não conseguiu, as veias ferventes

permaneceram intactas.


Na sala de estar não se pode andar de tronco nu, a radiação

do vício permanece encarcerada

entre vestes, num joguete

não muito amigável entre quem sofre

e o sofrimento.

Prostrada e encostada à costura da vida

à espera que languidamente as casas no corpo

fossem abertas, como uma costureira

abre casas para os botões. Sertralina, Morfex,

Seroquel, Victan fazem

Ana não rir

nem chorar, nem querer, nem parir,

nem foder, nem morrer

ou viver. Sobreviver. Estátua de cal branca

numa asfixia evidente.


Há uma solidariedade entre os que estão, nota-se

alguns a servirem de trave-mestra a outros

mais viciados, mais frágeis, ou mais fracos. Tristes

espectáculos sem público, doentes marionetas

com os cordelinhos puxados por um estado

fóssil

de si mesmos.


Falam pouco, falámos quase nada, diálogos

contra vontade e quase contranatura. Conversas

de nove minutos no jardim

ou no alpendre,

para exorcizar o estado que se deita connosco

e acorda,

normalmente,

atiçado. Histórias pungentes que deixaram

o espiritualismo na soleira da porta.


Quando alguém me apresentou José

por Sr. Toxicodependente, nunca lhe imaginei

os vícios no sexo e pornografia. Uma vida

alucinada em chão de esperma, traficada

entre vaginas disponíveis ao sexo

com travo a haxixe ou sexo visto na televisão, sem protagonistas,

guiões ou óscares,

apenas carne


a faiscar contra carne. Horas e horas do mesmo, dias

e dias a ver cenas idênticas, ejaculações

semelhantes sem nunca chegar

aos créditos finais. Escapes (felizmente que o espiritualismo

ficou na soleira da porta) que o mandariam


directamente para o inferno. Enviariam? Será que já

não está lá? Privado do seu corpo

lucífero, quente, sempre

disponível para mais uma, sempre só mais

uma dose de vício em estado latente.


As sombras são cada vez maiores, mais quarenta

e três pessoas que não fazem ou fazem algo em demasia. Gelado

e estreito, ergo-me uma última vez para sair, regressar à minha

janela. Agora não quero ver mais ninguém a entrar, pois

sei o quão difícil é aguentar-me

à saída.

******

pedro s. martins

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