terça-feira, 30 de agosto de 2011

SUPER-HOMEM - RICHARD DONNER (1978)

Para o Pedro Elói de Sousa

Voar os céus do mundo, acudindo aos desastrados,
aos frugívoros, aos tolos; demover o elefante
de pisar o estorninho, convencer a violência
a respeitar as passadeiras; ir ao bico da calandra
retirar o imprudente, ir ao bolso do partido
retirar o indevido; num só gesto aparar os golpes
todos, desviá-los para a rocha, para o aço,
para o chão; chegar a tempo sempre de evitar
a extorsão, a calúnia, o assassínio; impedir
que os pobres maus apanhem coça dos piores.

Quem nunca desejou um tal emprego, mesmo
sem contrato, mesmo se mal pago? Quem
nunca ambicionou, sequer por uma hora, encarnar
este Quixote voador? Expressão de pessimismo
mais conforme com a nossa imperfeição.

José Miguel Silva, "Movimentos no Escuro", Relógio D'Água, 2005.

sábado, 27 de agosto de 2011

"Palinopsia" de Pedro S. Martins




Em Setembro, as Edições 50kg irão apresentar o livro de poesia «Palinopsia» de Pedro S. Martins, uma tiragem de 150 exemplares numerados e assinados pelo autor. A capa é uma reprodução de uma aguarela de Ana Ulisses. Composto em tipografia de caracteres móveis.


II (CAFÉ CEUTA)

para a Helena Nogueira
e José Miguel Silva

Um dia - pensámos todos -
deixará de haver cafés
no Porto e o mundo
tornar-se-á ainda mais inabitável.

Avisei logo que nada escrevera
sobre esta cidade. Nem sempre
o desejo ou o amor nos garantem
as palavras. Quase nunca.

Mas havia tantas mesas
e cadeiras arrumadas quatro
a quatro, inventando só para nós
a alegria súbita da laceração.

Manuel de Freitas, "Telhados de Vidro 3", Averno, 2004.

domingo, 21 de agosto de 2011

38.

E tinhas, afinal, olhos doentes,
o veludo das mãos já se esgarçava;
nem era inteligente o que dizias,
nem elegante o gesto que hesitavas.
Por sorte, algum mau gene imprevidente
te dera um vago encanto adolescente,
e o prestígio banal do invisível,
risível quanto seja, te aguardava.
Por isso me deixei prender; tentado
a ser o manso tolo do romance,
servi sem jeito inquietação a rodos.
Ah, afinal, o teu sorriso era trejeito,
a fala sem razão e sem nuance,
nem tinhas, numa mão, os dedos todos.

António Franco Alexandre, "Duende", Assírio & Alvim, 2003.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

A Flor

Pardal Festo Festo
Em tão verdes folhas
A Flor em deleito
Vê-te um dardo lesto
Quer teu curto cesto
Junto ao meu Peito

Pisco Pisco Giro
Em tão verdes folhas
A Flor em deleito
Ouve o teu suspiro
Pisco Pisco Giro
Junto do meu Peito

William Blake, "Canções de Inocência e de Experiência", Assírio & Alvim, 2009.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Gregor transformou-se em barata gigante

Gregor transformou-se em barata gigante.
Eu não: fiz-me aranhiço,
tão leve que uma leve brisa o faz
oscilar no seu fio de baba lisa.
Até que, contra a lei da natureza,
creio que tenho peso negativo,
e me elevo no ar se não me prendo
ao canto mais escuro desta ilha.
Quando descer à teia derradeira
não se verá no mundo alteração, ou só
talvez alguma mosca mais contente.
Em noites de luar, na alta esquina,
ficará a brilhar, mas sem ser vista,
a estrela que tracei como armadilha.

António Franco Alexandre, "Aracne", Assírio & Alvim, 2004.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Amor e Ódio, Diários e Fotoreportagem VOL. 2


Tomé Duarte


48 pp / hand sewn with red silk / 28 x 20 cm / edition of 100, signed and numbered / laser printed.

Ver blogue do autor.

AINDA ONTEM

Não é em vão que chamamos por ti,
embora nunca saibamos chamar
se tu não nos ensinas o teu nome

para que possamos morar contigo
no segredo, na mesma direcção
de sempre que vizinhos e carteiro

conhecem. Sem problema de maior,
indicam a quem quer que lhes pergunte
a porta, dão informações. Agora

não está, deve ter ido ao café.
Nunca nenhuma carta se extravia
e todos me viram ainda ontem

a passar na rua com os jornais.

José António Almeida, "A mãe de todas as histórias", Averno, 2008.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Quatro cigarros no Café des Anges

de resto
cai cedo a noite na
Rue de la Roquette
a um domingo

o leitor afastará o fumo
destes versos e atentará
apenas na morena
de gorro vermelho

junto à janela

Miguel-Manso, "Contra a Manhã Burra", Mariposa Azual*, 2009.

* a primeira edição de "Contra a Manhã Burra" foi publicada em edição de autor.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Christina Rosseti

meigos grandes nada cépticos secos
os olhos de corça esgarçada à roda
lança

longos louros soltos em vagas
breves nunca crispadas
cabelos

Christina mansa amante pré-rafaelita
no leito recolhe se cobre semelha
receio

tolhe branca a túnica hirtas
tersas as formas dos seios ao canto
paira

aflora sobre a auréola a sombra
de Gabriel o irmão. também faz versos
concita

com-paixão.

Margarida Vale de Gato, "Mulher ao Mar", Mariposa Azual, 2010.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Acordo

Acordo
com um som de lágrimas
nos braços. É a aventura

vestida da cinza fria
do cansaço. Bebo
o atrasado veneno da espera, um lagarto

passeando-se na boca

José Carlos Soares, "Bátega", Edição de Autor, 2006.

Poema de herberto helder

Estátuas irrompendo da terra, que tumulto absorvem?
Os cabelos resplandecem.
Os símbolos que celebram dão à pedra uma tensão, um
desenvolvimento, uma aura.
Em cada uma delas eu abraço uma estrela.
Abraço-a ponta a ponta das mãos
numa só massa transpirada.
Arrebata-me, calcina-me.
O chão é a potência astronómica.
No escuro do ar rebentam floras. A carne única
vibra como uma vara
de baixo
para cima.

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Contínua estadia na soleira do coração.

Retrato

Fotografia de Tomé Duarte no Café de Ceuta, Porto.

CEIA EM EMAÚS

Não se sequestra o mar, como se
sequestra o céu? Línguas de fogo
erguem-se sobre as cabeças, esta ceia
sacia-nos, como se sequestra a fome do mundo?
Está é a noite ilegítima, em que a insónia contempla
uma culpa sem tempo, esta culpa perdida.
Como se sequestra a luz que há no espírito, a dor
pela treva irremissível?

Amadeu Baptista, "Antecedentes Criminais", Edições Quasi, 2007.

A COLMEIA DO AMOR

Pairam abelhas sobre dálias
e cravos de plástico

feios moscardos flutuam
num resto de água inquinada.

O tempo fará de ti uma varanda
de costas para um pomar.

Rui Lage, "Um Arraial Português", Ulisseia, 2011.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

CADELA

Não te recordarei.
E hei-de passar por ti na rua
e não te falar.
A prosa infiltra-se nos versos
para eu assistir ao desmoronamento do som
e não ficar de pé nem um eco:
só o pêso do silêncio
mais o teu ladrar ao fundo do beco.

Não te recordarei.
E, no entanto, falo de ti
com desgosto, não já por te haver perdido,
mas sim por te saber de ti perdida
e sem dono.

Beco dos Birbantes, 1. VII. 08

António Barahona, "O Som do Sôpro", Poesia Incompleta, 2011.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

miúdos

"À luz do final
da tarde
os miúdos tomam
de assalto
a Avenida dos
Aliados para as suas
brincadeiras
frugais.

Mergulhos no fontanário
em vestes
precárias que desafiam
o quotidiano
cercante
a expulsá-los. Cada um
é o seu
próprio

deus.

Porém,
no meio
de tanta acracia,
não se esquecem
que não existem
imortais

depois da
adolescência.

É tão útil
mergulhar
nos Aliados
como escrever
este poema;

Será tão profícuo lê-lo
como desafiar
o quotidiano."
******
pedro s. martins
poema originalmente publicado na Piolho #5