sexta-feira, 30 de setembro de 2011

A PRIMEIRA PALAVRA

Acompanhando a curvatura da terra
o primeiro olhar descreveu a sua órbita
sobre as oliveiras. Só mais tarde
a pomba roubaria o ramo
e iria de árvore em árvore propagar a primavera
Foi então que os olhos se cruzaram
e estava dita a primeira palavra
à superfície do tempo

Ruy Belo, "Aquele Grande Rio Eufrates", 1961.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

3

quando
contar a história da rosa
é fazer a rosa e nisso irmos
crescendo. o jardineiro que
te conta um conto enquanto
a rosa trabalha no herbário
que sobre os joelhos vais
folheando.
até que já não lemos mais
pra diante. entre folhas o jardim
suspenso
tece as raízes submersas. as pétalas
espalharam o rumor, e múltiplas
as abelhas devoram velozmente
o cérebro que apaga e acende.
o sistema nervoso da rosa
dispara: rosa, rosae.
canto o conto sem medida e
sem paz. o herbário entretanto
se incendeia.

Manuel Gusmão, "dois sóis, a rosa", Caminho, 1990.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

NOCTURNO

Tal como a enorme asa de um grande pássaro
que tudo escurece
mas também agasalha,
assim chega esta noite.

Não há ave mais escura.
Nem sequer a recordação de outras noites
e a sua lua anoréctica
escondida no alto:

linha ou pluma de luz,
quarto-minguante.

Não há ave mais escura do que esta noite.
(Aquele que fala de ausência
desconhece o vazio.)

Madrugada
que nunca se encontrará com os teus olhos.

Josep M. Rodríguez, "A Caixa Negra", Averno, 2009.

domingo, 25 de setembro de 2011

OS ANIMAIS

Vejo ao longe os meus dóceis animais.
São altos e as suas crinas ardem.
Correm à procura duma fonte,
a púrpura farejam entre juncos quebrados.

A própria sombra bebem devagar.
De vez em quando erguem a cabeça.
Olham de perfil, quase felizes
de ser tão leve o ar.

Encostam o focinho perto dos teus flancos,
onde a erva do corpo é mais confusa,
e como quem se aquece ao sol
respiram lentamente, apaziguados.

Eugénio de Andrade, "Obscuro Domínio", 1971.

INTRODUÇÃO AO CANTO

Ergue-te de mim,
substância pura do meu canto.
Luz terrestre, fragrância.
Ergue-te, jasmim.

Ergue-te, e aquece
a cal e a pedra,
as mãos e a alma.
Inunda, reina, amanhece.

Ao menos tu sê ave,
primavera excessiva.
Ergue-te de mim:
canta delira, arde.

Eugénio de Andrade, "Coração do Dia", 1958.

sábado, 24 de setembro de 2011

De súbito
como do alto do estio
nós estamos no aqui.

Cada coisa que vemos é feliz
e nós somos o seu silêncio
ou o seu nome.

O clamor tornou-se voz
e o silêncio claro
equivalente a um fundo azul liso.

Luz lúcida
excepcional
sobre as errantes raízes
lenta portadora de uma água visível.

António Ramos Rosa, "horizonte a ocidente", Cosmorama, 2007.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

NÃO TEMOS MUITO TEMPO PARA AMAR

Não temos muito tempo para amar.
A luz vai desaparecendo.
As coisas que amamos são as mesmas
que em breve perderemos.

Os piores vestidos são os que
diariamente se vão usar.
Os teus cabelos já te vi pentear,
em silêncio - íntimo,
escuro e caloroso.

Tentaria tocar-te num braço,
mas escolhi não o fazer.

Podia, mas não quis, quebrar
aquilo que se mantém imóvel.
(O mais ténue suspiro
quase seria um estridente grito).

Por isso, os momentos passam
como se quisessem ficar.
E não temos muito tempo para amar.
Uma noite. Um dia...

Tennessee Williams, "Alguns Poemas", Língua Morta, 2011.

O MEDO

No eco das minhas mortes
ainda há medo.
Conheces o medo?
Conheço o medo quando digo o meu nome.
É o medo,
o medo de chapéu negro
escondendo ratazanas no meu sangue,
o medo dos lábios mortos
bebendo os meus desejos.
Sim. No eco das minhas mortes
ainda há medo.

Alejandra Pizarnik, "30 Poemas", Língua Morta, 2011.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

CASTELO DA DINASTIA CHOSON

Lua cheia - vaso de porcelana branca.

Flores de maio sangram no bosque
- voz da tempestade na primavera.
A fronte pálida, o rosto com as mãos.

Gota de sangue - matéria delicada e viva.

Chamou-me, veio ao meu encontro.
Ao abandonar-me
a chuva cai sobre a fadiga, um caudal sem nome -

João Miguel Fernandes Jorge, "Telhados de Vidro N.º I", Averno, 2003.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Os mortos

Eu sei, é preciso esquecer,
desenterrar os nossos mortos e voltar a enterrá-los,
os nossos mortos anseiam por morrer
e só a nossa dor pode matá-los.

Tanta memória! O frenesim
escuro das suas palavras comendo-me a boca,
a minha voz numerosa e rouca
de todos eles desprendendo-se de mim.

Porém como esquecer? Com que palavras e sem que palavras?
Tudo isto (eu sei) é antigo e repetido; fez-se tarde
no que pode ser dito. Onde estavas
quando chamei por ti, literalidade?

E todavia em certos dias materiais
quase posso tocar os meus sentidos,
tão perto estou, e morrer nos meus sentidos,
os meus sentidos sentindo-me com mãos primeiras, terminais.

Manuel António Pina, "Poesia, Saudade da Prosa", Assírio & Alvim, 2011.

A boa companhia


O "palinopsia" em excelente companhia.

domingo, 18 de setembro de 2011

Novo poema

Novo poema do "palinopsia" publicado no blogue Porosidade Etérea.




Da janela

observo o homem
que passeia
pelo Boulevard du Montparnasse
em roupão.

Sobressaltado
fuma cachimbo como
se tivesse
uma seara

de fogo à frente
dos olhos.

Desaparece entre
o espelhar

da Gare e o algodão
do céu da minha boca.
Sempre fui eu
a única figura
que reconheço

nestas alucinações
líricas.

sábado, 17 de setembro de 2011

Junto à capelinha de S. Bartolomeu

O horizonte arde
cães muito magros ardem
e o lixo é empurrado por mãos invisíveis.
O redondo pequeno dos olhos dilata-se num tremor
branco, sugando restos de panos húmidos.
O diabo à solta urina no mundo.

João Almeida, "o mal dos postes de alta tensão", Black Son Editores, 2000.

ASSINATURA

Entre lágrimas de crocodilo
o homem com gestos de lava
que aponta o local do crime
todas as manhãs
e eu despido de rosas
subo a escada de caracol da morta
para ir deixar na tua pele a assinatura bárbara
com a caligrafia trémula todas as manhãs
e todas as noites de terror
entre a música dos astros.

António José Forte, "Uma Faca nos Dentes", Parceria A.M. Pereira, 2003.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

À venda

O "palinopsia" continua a chegar às livrarias.

Já está à venda nos seguintes locais:

Braga
- Capítulos Soltos

Porto
- Livraria Utopia
- Livraria Gato Vadio
- Livraria Estratégias Criativas
- Livraria O Homem dos Livros
- Livraria Candelabro

Caso não tenham uma livraria perto, podem sempre encomendar através da editora em: edicoes50kg@gmail.com.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

PÁGINA

Principiamos a ler. O rosto inclina-se. Ainda separadas,
algumas das letras estremecem. Tudo aquilo que se sente
é a respiração que fica à sua volta. O ar destina-se às palavras
e também ao silêncio. A luz que chega pode explicar-nos
melhor o que se passa. Os olhos sabem-no. Daí a pressa
com que se aproximaram dela, até se tornar o que se leu
mais nosso. Depois repousamos um pouco. Uma das mãos
estende-se e vai ao encontro de outra página. Esta será maior.

Fernando Guimarães, "As Raízes Diferentes", Relógio D'Água, 2011.