segunda-feira, 30 de março de 2009

shiva I

Vou destruir tudo
e mandar erigir
um poema com as letras
que se aproveitarem.

Renovador e transformador
poderia ser Shiva
hoje.

Porém, o que desejava mais ao atirar moedas
à água era ser Shiva em mim. Destruir-me
para reconstruir
uma morte melhor,
sabido que a vida está assim:

flutuante sobre ela própria.

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pedro s. martins

adeus em água menor

Quando morrer no mar
do teu corpo,
afundar-me-ei numa
parábola à minha
vivência sem ter
tirado pé de terra.
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pedro s. martins

sábado, 28 de março de 2009

casa bipolar

(fotografia gentilmente por Maria P. - Casa de Maio)

Estremece a casa desde o chão
a transbordar vida verdejante
até à chaminé
desafiando o destino a viver em cima
de um fio quente.

As janelas morreram de solidão
e saudade as portas
já não são entradas nem saídas, e a pedra
há muito que se escora na finura da madeira
que imita a pele de algo / alguém que está
preso pelas ancas entre o vivo
e a redução a escombro.

Desta cadeira
observo uma casa bipolar desde a pedra
à aura,
alicerçada
por um tapete de vida esperançosa
em algo
construtivo.

Era eremita até as criaturas perceberem
nela uma linha a descoser-se
entre a luz do dia
e o negro
das trevas.

Vive alma nesta estátua de habitação
pretérita. Mergulha devagar um dos seus
lados sobre quem a soube alicerçar: mãe
terra,

enquanto o outro, o dextro,
se ergue
num elegante sorriso, cumprimentando
quem a vê: ninguém, ou quase.

Ovelhas soletradas pela relva assistem e pastam
enquanto trocam olhares
complacentes com a casa madura que pede
o verde à relva para ter esperança
em albergar,

novamente,


carne madura.
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pedro s. martins

sexta-feira, 27 de março de 2009

chapinadela


(imagem de Ilda David)



Em Cambra, na praia fluvial,
Março com o seu sol
tímido e nós com a praia toda
para nós no limite
da desatenção.

Descalços com o frio da
areia a desconcentrar-nos
da sua macieza. Apetece-nos
entrar pelo rio adentro,
ir ver o que está no seu lado
mais profundo e incógnito.

Chegaríamos longe e, em aflições
de água pelo coração, perceberíamos
a felicidade de ali estar. Nada é como parece
e o pouco que sentimos era
o nosso corpo a deixar
de ser pesado sem nunca termos
deixado para trás
a areia.

Em vez de nos lançarmos à água,
lançamos pedras. Três chapinadelas
e estava ao nível do meu irmão, seis
e igualaria a marca determinada
na minha memória pelo meu
pai.

(- o truque está em apanhar pedras achatadas
e listas)

E estava. Três tentativas, cinco chapinadelas.
Três felizes, nas areias de Cambra. Não venci
o meu pai, talvez por falta de treino,

ou, acredito,

porque havia ali uma lição de respeito
a ser aprendida.

Para o próximo ano haverá mais Março,
as águas, pedrinhas e areias mansas
esperarão pelo regresso a casa do pai,
filho e irmão.

Para o ano, haverá sete beijos da minha
pedra na água. Prometo.
******

pedro s. martins

quinta-feira, 26 de março de 2009

Poetas emergentes - Poesia in Breyner85

Poetas Emergentes

Poemas de Pedro S. Martins, Susana Guimarães, Luís
Pedro Afonso, Pedro Tavares, João Borges, Nuno Brito,
Bruno Brasil, Jorge Afonso e Marco Dias. Leitura
Susana Guimarães e Nuno Meireles. Acompanhamento
Música Rap: Ace e Maze.


Domingo, 05 de Abril de 2009, 18 horas. Breyner85.

terça-feira, 24 de março de 2009

curso completo

(foto gentilmente cedida por Tomé Duarte)

Hora a hora, ouvi o meu uivo
durante a viagem toda. Desde o obscuro
à luzidia cidade, ao som acrescentei
o fiar da seda que me cobria
o rosto; ou o resto que não era dom
da imagem.

Foram dias lembrados, em movimento,
inventados pelos minutos que precederam
a hora a hora e agora inventa-os a memória. Não
há quem consiga estar aqui, neste buraco
que escavei com sem utensílios.

A viagem veio ter aqui. Lembro o perfume que este
pardieiro tem: rosmaninho, tu, pêlo, tu e um
suave amargo ao escuro do espelho que é
o tal resto de rosto.

Cada vez pior, cada vez mais torto, a concavidade
do sonho de estar aqui sozinho. Levantado, faltam-me
dois metros para a superfície: outra viagem até as unhas
desabrocharem no mármore. Fria
esta estrela da morte que me enrola
e serve de tecto nesta bolsa tenra
que me serve de estadia.

Tenho o coração no fundo e a cabeça
bêbada.

Continuo a escavar. Três metros
para o frio do mármore,
quatro,

cinco para o quarto que era meu. Olhos abertos no abismo
que é bolha envolvente em mim. Cada vez mais, cada
vez
menos.

Amanso-me com as armadilhas da vida. Sinto-o sopro
do final a chegar. Mais viagem, agora com as unhas,
rasparem até o sabugo sangrar.

Uivo. Raspõe e tira.

Canções múltiplas em mim, a mármore, o mármore,
já está tão lá em cima que lhe podiam desenhar uma lua.

Quarto minguante em mim. Natações de mão em mão,
íngreme, recta de vida a esmorecer
num resumo vertical

como este poema.

Todo eu sou brilho, reflexo do final que avisto
daqui. Serei uno com o centro
da terra., ponto uno com o universo.

Daqui à estrela será tanto como
de mim a ti.

O escuro ficará atrás da vida, talho
a matriz do meu umbigo
à chegada.

A radiação nas entranhas deste mundo
é louca. Explosivo à chegada, rasgo
a bolha com o canivete feito de osso,
e confundo-vos com a morte de dentro
e a morte de fora.

Todos os meus dias são submarinos,
tábuas debaixo da plaina
em direcção à origem. Eu sou

virgens
de uivos aos núcleos
da alma.
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pedro s. martins

sábado, 21 de março de 2009

cidade cravada nas costas

(imagem gentilmente cedida por Filipa Júlio - Espiral Medula)


A cidade: todas as ruas e avenidas
na minha cama. Treme a estadia
na paisagem arrancada do chão.,
ficam os sulcos para quem se quiser
afundar na riqueza dos soluços
entre o fogo e a carne.

Todas as pessoas estacadas
pela leveza das próprias membranas,
furos que deixam escoar a translúcida
e ardente paisagem interior:

medo, sangue e amor.

Cidade de sumptuosa ausência,
ficarás cortada de mim pela chaga
que sangrará perpetuamente. Rasgada
de mim como da obra
com uma unhada nobre. Restar-nos-á
o manto
o escudo
o lenço

para amansar as voragens da despedida. Ficará
a cidade
dor de músculo na perna do país
e arderá a obra
fremindo as vogais contra o tronco do
poço da vida.

Como uma força maior, o desaparecimento
de uma estrela

(nunca brilhante; nunca “brotante”)

alimento adormecido e contornado
pelos vivos. Idolatrado pelos inocentes, crianças
da cidade, fechados pulsando
combustível cultural:

vocês aqui.

Eu por ali: fraccionando-me por entre rachas planetárias
e isolando-me com as minhas feridas
dedais. Morrerei pelo fogo engolido
ao contemplar a inocência da erva dobrada
pelo vento,
obra cerebral dos mortos.
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pedro s. martins

sexta-feira, 20 de março de 2009

fala

(trabalho gentilmente cedido por Alexandra de Pinho)

Separa-me a abelha conspurcada
de vida
os dois lábios que queria
cerrados na altura
imediata.

Não me escapam as horas
de fala, enquanto queria
o silêncio a escorrer pela
parede como papel de mel
a embrulhar palavras
de fel.

Ardor, ar
de dor devorando a minha
volta. Para nada serve a minha
fala ferrugenta, quando outros
discursam degraus e são tão
escutados.

Sei-te o rasto do corpo
riscado na retina. Nunca
precisamos de uma vogal
para despedirmos os coágulos de saudade,

para nos despedirmos de. Deixemos

os tontos
acenarem as separações com palavras.

Ferrei a abelha. Separamo-nos.
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pedro s. martins

quinta-feira, 19 de março de 2009

quatro verdades

(imagem gentilmente cedida por guizo - agenda 2008)

Tudo se espalhou num impulso rectilíneo
e sem grandes hesitações. Estradas brancas
“entectadas”
por astros silenciosos que nos deixavam
escolher. Fulgurante, a visão que me agoniza. Despedidas
queimadas por nervos pululantes,

divididas em quatro verdades que se querem absolutas.
Não há facas milagrosas nem corpos freneticamente
suspensos sobre
o destino dos que por aqui estão. O espaço
entre as verdades
começa a ser diminuto e deve ser aqui
recriado pelo desenho das letras.

Cubro a tela com dukka: a natureza da vida. Venha
com ela o sofrimento; venha com ela as mágoas
e as alegrias. Sentimentos bebés irradiando
imperfeições
sobre quem os quer alcançar
e compreender.

A escrever o poema, sinto-me a pintar crentes
em naturezas-vivas à espera que alguém repare
na sua plumagem nelas. O desejo
e sede de viver
e ser vivido.
A mulher a viver mais próximo de mim,
com todas as paixões,
impurezas e o sabor
que elas têm nos doces lábios. Vivem segundo
samudaya e que vivam.

Vivam apenas.

Atirem ao tapete
tudo o resto – o equilíbrio que a dança entre as impurezas
e as paixões proporcionam –
e vivam-me.

Atribuo nomes a estes acontecimentos assaltantes
do ser: o terceiro – nirodha – a cessação de dukka.
Ou seja,
aquela criança recolhendo moedas do rio lacrimal de pobreza
e sorrindo com os pés
no gelo de santa catarina – Nirvana absoluto: a derradeira verdade
limpa e cristalina. Em quem?
Na criança, ou em mim que lhe via
o feliz contrapor com a tristeza a esvoaçar juntamente
com as notas que saem do acordeão de um cego?

Os dias deslocam-se entre sóis e luas. Os dias
deslocam-se
entre visitas à criança.

Sorri para mim sem me ver. Sorri para todos que estão mais quentes
que ela. Limita-se a enregelar,
a pescar moedas e a sorrir.
Eu vi.

Não falo de um sorriso para atrair moedas. Nem de moedas para atrair
sorrisos. É magga – a compreensão do nirvana absoluto.
Resta-me
a minha consciência de estar a ficar louco por ver alguém tão novo
e triste para mim ser tão maduro e alegre para si mesmo.
Dizem-se
que o conhecimento do “óctuplo nobre caminho” não
basta
para se manter assim.

O conhecimento não chega. Ficam-me o resto das ruas da cidade
para entender que é preciso seguir
e manter-se no supramencionado óctuplo
nobre caminho para que a vida subtilmente não me engane.

Não enganarei eu a vida primeiro? Onde eu vejo jejum, a criança sente
a luminosa floração de algo belo sobre chãos onde a chuva vai
morrer sobre chuva já morta.

E diluído por este mundo construído pelo poema, no interior
luminoso que promove quatro verdades
apenas para si, ela toca-me o chão
e escreve por mim o final:

eu não estou absorvido pelo poema,
estou absolvido pelo regenerar da escrita.

Irei agora para onde o resto da vida não mata
verdades, ensina-lhes o que eu ainda
não aprendi.
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pedro s. martins

terça-feira, 17 de março de 2009

eco

(imagem gentilmente cedida pela Carolina - a casa real)

Não sei se alguma vez escaparemos a este passo
cíclico segundo
eu grito a escrita que tenho em mim e alguém lerá
as grafias segundo riscos deslocados
nos tímpanos das órbitas.

Sou um aldrabarão. Penso e escrevo neste acto
e vocês lêem os ecos a zumbirem-vos
os sentidos. As cinzas da escrita dispersam-se
por aí, juntamente com as intenções e o meu
sentir da ferida a estancar a ignição.

Quando lerem “Não sei se alguma vez
escaparemos a este passo”, estão a ler-me
uma memória. Estarão, os mais atentos, a sentirem-me
um eco.

Não volta a vossa voz a mim. Os vossos dedos não vêm
ter comigo. É a incessante sombra do eco a ferrar
parte da luz do poema. Sopram-me compensações
do que leram pela boca dentro. Coração e mente unidas,
devoradas pelo avançar para o próximo poema.

Os poemas não são para serem lidos. São comprimidos-
-bomba tomados e despoletados cinco minutos depois. Um
clarão deslocado dentro da vossa cabeça. Um clarão espetado
na carne. Um clarão a explicar-vos que a luz que vêem
já cessou a sua existência depois da toma
e da explosão.

Leiam-no agora e sofram da límpida braçada
de pretérito doce. Não se adiantem, continuarei
a furar a condição espácio-temporal
até ao próximo escrito.

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pedro s. martins

segunda-feira, 16 de março de 2009

colónia

(trabalho gentilmente cedido por Joana Rêgo)


conheço a partida que fabrica o seu próprio adeus
enquanto continuo a pensar que partir é escrever
uma dezena de vezes “não gosto deste poema”
e aguardar pacificamente que o derradeiro
amadurecimento da escrita me bata no ombro,
como um cobrador numa camioneta e diga:

“o seu bilhete?”

tenho treinado para o obter. Todas as noites,
quando todos fingem não viver,
com as pálpebras cansadas
viajo para um corpo menos abatido
e lembro tudo o que por ali vai estando
vagamente esquecido.

não lhe chamaria mutação. Os operários
não se transmutam. Os barcos não
se transmutam. Eu sou a travessia operária
de costume em costume.

“o seu bilhete?!”

pálpebra aberta menino. Pálpebra
aberta sobre o rosto escuro. Simulando
alegrias e tristezas
sinto as veias
bombearem o que não é meu. Há-de
servir para responder
“está aqui” ao revisor.

“o seu bilhete!”

porque não vens comigo? Seremos seres
diluídos na trémula vivência dos outros,
correremos atrás do amadurecimento
da mão
como quem aguarda que as uvas pintem.

não tenho bilhete.

contudo, tenho alguém ao meu lado,
lúcida e apaixonada por quem sobreviverá
ao sono. A escrita deste poema? já disse,
não gosto deste poema, porque não gosto
de palavras que já foram utilizadas.

quem precisa da escrita quando o mundo está
a arder e as uvas a caírem num chão nu?

corpos sulcados com vista para um interior
luminoso. Sim, é isto
o importante.

vem comigo.
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pedro s. martins

sexta-feira, 13 de março de 2009

vermelho

(imagem gentilmente cedida por Francisco Carvalho - Nu Singular)

A tua ausência germinou sombras
de vermelho desejo. De mim, outro.
Com todos, tantos à espera
que se esfumem os gumes do destino
prescrito a oco.

Inventámos estados de amor ao
desfazer novelos de ódio. Inventaremos
os que forem precisos à data do teu
regresso. Se for necessário,
deliraremos na rédea que nos
convencer o frágil.

Beijo-te na testa uma última vez. Regressaste
para me sussurrar que a saudade fácil te
tinha transformado em ilusão
permanente. Estás cã e gélida. Como
surpresa descalça sei que te esvaziaste
de vida comigo a amar-te na solarenga
tarde do ser.

Resto da minha intensidade em ti,
uma última vez.
Sento-me
sobre a luz lúcida da partida
e calço-me
de tristeza em passos teus.

Clamo-te com o todo que era. Indulto-me
com o pouco que sou. Amar-te-ei com o nada
que serei da tua fusão eterna com a terra
amargosa à perda.
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pedro s. martins

(poema previamente publicado na revista Magnética)

quarta-feira, 11 de março de 2009

laranja

(ilustração gentilmente cedida pela Tamara Alves - Urban Jungle)

(para o joão g.)


Sei que dia é hoje porque em direcção
a um lugar carregado de planetas
um fluxo de crianças deslumbradas
cruzava a rua,
todas vestidas de laranja.

Sei que dia é hoje porque do outro
lado uma senhora (dona senhora), agrupa
pontas de cigarro ex-abrasadas,
todas vestidas de laranja.

Vi-a daqui:
a cada cilindro beijado descoberto no lancil, o seu peso
arrastado até ao coração. O sangue estremece
e a pesada pedra do quotidiano
derrete-se em seiva sobre a sua boca,
deixando-lhe o interior um pouco mais
perto de estar descosido de movimentos
pungentes.

É no centro deste mundo que a ferida
é mais inocente e húmida. Fascinado,
permaneci territorialmente
à espera que as crianças
se cruzassem com a dona senhora (estimada dona
senhora).

Sentia-se o clarão do chispar entre gerações,

até que uma menina fica de pupilas exaltadas. Via tudo
na varredora (estimadas donas senhoras há muitas)
e é agora uma lenta estátua a arrastar-se da meninice
até que seja ela a varrer pontas de cigarros fumadas por
alguém nesta linha temporal:

eu.
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pedro s. martins

segunda-feira, 9 de março de 2009

como isto

(imagem de Ilda David)

É grande o riso que separa
Philip Glass destas linhas. Soubesse
eu como iria acabar este poema e saberia
como acabaria a música que carrega
de memórias o istmo dos ouvidos
ao pingar dos dedos.

Tenho tanta emoção morrente
de mim. Lêem aqui os restos. A minha vida é
esperar e ser levada pelos imensos possíveis
neutralizáveis em mais uma ressaca negativa. O ano
está carregado de memórias e eu com ele.

O procurar do meu nome em vão. Morrerei pela
descrição do vento nas árvores. Uma dança não planeada
e procurada por poucos.

Aqui era onde eu acabaria o poema. Ficaria limpo
de um atafulhar em palavras e emoções.

Continuo.

Continuo para dizer isto: há beleza por aqui. Não em mim,
na palma da vida que se abre e me deixa ler tudo. Daqui
vejo tudo e todas as loucuras são possíveis porque estou
sozinho com as letras.

Nesta paisagem não existe a rede que sou. Filtros,
nomes, adjectivos,
métricas e semânticas de encher o pensamento
de saliva.
Sentem? Tudo trocado por belezas antigas e o caber nas retinas.
Memórias e epifanias. Sopros agrestes a agitar a árvore
do meu fim, a folha que descreve o meu nascimento
em decalques suaves durante vinte e cinco anos.

A olhar por estes olhos imensos,
qualquer outono florescia. Qualquer arma
se renderia ao brinquedo. As dobras em cuidados
e eu em desdobras para que isto se mantenha.

Só mais uns segundos. Deixai-me ver o rosto que freme
da infância à morte.

Não consegui. Mas vi uma pedra com o meu nome.

Negrume.

Na lápide dizia: o breve nome que tu deixaste. Na minha adiv
a ordem como a vivi.

Desta vez, tombarei com o choupo que me serviu de poisio.
Já está e nunca sai daqui.

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pedro s. martins

domingo, 8 de março de 2009

sentada

Segredaste-me que a minha falésia era
o rutilante espelho que trago impresso
na carne. Ao acreditar
abri de imediato
o incandescente transladar da minha decisão
para a tua vontade.

Perdi o narrador que havia em mim
para o teu contornar de vivências –
assaltos num ringue de emoções
viciadas.

A minha vida passou a ser assim: sentada. E não é isso
que me dói mais.
Constatar o abrupto cortar das raízes fixantes
à eternidade é o motivo de tantas vezes patinar
no silêncio do pousar rude na beleza do horizonte
avistado do meu alcantil.

Dia uno a viver sob um céu de gambiarra.
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pedro s. martins


PS: quem quiser que o ilustre, quem quiser que o comente, quem quiser que se inspire.

sábado, 7 de março de 2009

mar de tempo

(imagem gentilmente cedida por Rui Sousa - o temporário)

O tempo morde o tempo que os corações
desolados das cidades não têm. Vejo-te
daqui a pousar a chávena no pires; o pires
na mesa e a fazeres do teu encontro
com o desconhecido
uma indústria de bocas;
uma linha de montagens
de gestos.

E os sentimentos acontecem-nos como
um estalo dado por uma folha que se descuida
e cai:

nunca estaremos pronto para os seus
assaltos
mestres em descomposturas.

Fiquei à espera que fossem embora acabar
o embalamento do vosso produto:
o amor.
E fiquei até tarde, bem tarde.
Fiquei até que
a noite mandasse o dia para o sacrifício do anonimato
e não observei mais nada que não fosse
a despedida de mil folhas em direcção
ao meu sentir.

Magoam-me as folhas caducas
enquanto a vocês brotam plantas semeadas
com recolheres de sentimentos planeados
e plantados
pela juventude.

Estão melhores assim. Terei sempre a certeza
que estão a produzir algo pelo amor certo,
enquanto eu varo-me a mim na ânsia de encontrar
o motivo de já não sentir o compromisso no olhar,
apenas o querer ser contigo uma única palavra:
mar.
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pedro s. martins

sexta-feira, 6 de março de 2009

entremorte

(trabalho gentilmente cedido por Tamara - Urban Jungle)

Viver-te é radiografar o crepúsculo
do ócio contínuo. Não
há dia em que não sinta o ocaso a tomar-me,
lentamente,
as rédeas de tudo que me separa do fim,
a suave transição do meu nome próprio
para “Entremorte”.

Concedo-lhe esse estatuto
ao deixá-lo nidificar em mim
o conceito de matar o quotidianoà força de um tremor carente
que não sucumbe ao último fôlego
da inspiração celeste que desencadeias
por mim adentro
como um animal completo.

Sempre pensei que para te descrever a presença
teria que molhar a pena em consciência. Afinal, não.
Bastou-me não obedecer a nenhuma regra imposta
pelas hipérboles que fazem da minha coexistência
um campo minado por ti
para ti.
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pedro s. martins

quinta-feira, 5 de março de 2009

umbigo em sol

Sonho com o teu umbigo
em sol. Ferida na claridade
do egoísmo. A tenebrosa
consciência de querer ver o seu pôr
sem revirar os olhos
para o horizonte descarnado.

Somos a reescrita despreocupada
da matéria intensa em pautas
comuns às loucas alegrias emulsionadas
do teu ventre. Primeiro o encantamento,
depois a cegueira,
finalmente,
o abrir de todas as feridas fechadas,
sem abrires sangue no mundo.

Não tens idioma para transformares
a nossa vida em cantos esdrúxulos
sem idioma ou caseiro,
apenas o sereno
trabalhar do pensamento em ti.

Com o despertar,
prova-se do amargo constatar que és apenas o cansar
da água principiante a cascata nas gengivas
da nossa vida horizontal.
Com o sol a deslocar-se
de ti para a carne das nuvens, sei que seremos
a foice que cegou a noite e fracturou as vis
labaredas do teu nascimento em mim.
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pedro s. martins

terça-feira, 3 de março de 2009

toupeira abrasada

Comeu do chão as sombras
possíveis e enterrou-se
nele a seguir. Para que não
restassem dúvidas da sua
passagem,
deixou a sua sombra a fazer
de lápide.

Da sombra à terra revolta, um cordão
metálico até ao fôlego que ficou
retido na garganta.

Na sombra,

as feições do rosto: nariz adulado
pelo sexo oposto, lábios gretados e
rugas que lhe faziam a testa
pautada.

A revelação lenta de que tinha deixado
uma convulsão de homens mais
puros ao comer o seu passado.

Vive agora subterrâneo. Astro. Pleno em cores
inventadas para ilustrar o seu enxame de estados.

No dia que hoje for, é ouvido a talhar o chão e a incorporar
pupilas de animais com ciência no comportamento
e cicatrizes no olhar.

Daqui a uma semana
recomeçará a lamber as sombras e a mergulhar
lentamente
na cicatriz
da sua própria poça de negrume
definida no côncavo
chão do sono
só por ele conhecido.
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pedro s. martins

segunda-feira, 2 de março de 2009

Outra janela

A imagem que despertou o poema Útero inaugural foi tirada pelo Paulo Barros - Onírica. Agora, as letras do poema encaixaram-se noutra imagem – Outra janela.

É bom quando imagens e letras fecham os olhos, dão as mãos e dançam em bailaricos contíguos como se fossem crianças.

É melhor quando esse bailarico tem uma estória de liberdade literal.

domingo, 1 de março de 2009

útero inaugural


(imagem gentilmente cedida pelo Paulo Barros - onírica)

Vivo nas costas das palavras plasma e filho

alimentando-me de janelas com vista

privilegiada

para a época delirante

e outonal da sobrevivência.


Morro e ressuscito ao ritmo

com que a urdidura do inebriado

passado

se vai fundindo com as cortinas

transmudadas em clarões

de experiência acumulada.


O meu gosto por este passo é

tanto, que frontalmente à foto devorada pelo

mogno lateral do meu corpo

mandei pregar um calendário

fechado ao tacto.


Resplandecente rama que ludibria

o teu rosto a correr

inversamente.

Quando


a última folha do calendário cair

sobre as minhas raízes

de porcelana, estarás emoldurada

a mascar placenta dentro

do útero inaugural.

******


pedro s. martins