quinta-feira, 5 de maio de 2011

vésperas da paz

um vaso de gerânios, uma mesa
um livro aberto no chão, a folhear
o vento e a manhã, na varanda
a andorinha agarra-se à parede
e explode o voo no desenho das asas

Rui Nunes, "Ofício de Vésperas", Relógio D'Água, 2007.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

«Não tenhas confiança na tua juventude.»

Noites de tabaco com resina
de Marrocos, pequenos quartos

onde a música era enorme.
As ruas pulsavam, eram coisas

mortais, o pensamento um carrossel
de monstros vivos. E nós os únicos,

os mais sós, os mais relapsos
no caminho que descia do devaneio

à angústia. Esquecidos das horas
num qualquer degrau perdido,

o futuro era aterrador: it will end
in tears. E tudo o que sabíamos

estava errado, menos isso.

Rui Pires Cabral, "Oráculos de Cabeceira", Averno, 2009.

MB

Amputou milhares de pernas -
De brancos, de vermelhos, de incertos,
De guelfos e gibelinos, de cátaros -
E assim fez a mão.
Depois, escreveu muito melhor.
Em plena revolução,
Só o diabo entendia o amor.

Nuno Rocha Morais, "Últimos Poemas", Quasi Edições, 2009.

terça-feira, 3 de maio de 2011

Uma prenda

Revérbero negro

Às vezes assusta-me este novo riso que tenho. Não que antes
não risse, mas exactamente porque antes ria e este riso não ri.
Apenas revérbero negro do que seria um sorriso se alguma
alegria o tomasse. Só que não há alegria e o riso perpetua-se
negro sob o céu pesado do olhar de outros que se perguntam
e com razão: estará a ficar louco? Por mim nunca me coloquei
a questão (é o olhar deles que me assusta). Nos dias a questão
foi sempre outra: como sobreviver a esta dor sem pausa?
como atravessar este grito sem fim? É para ela que o riso é
solução.

Jorge Roque/Guilherme Faria, "Broto Sofro", Averno, 2008.

UM FIO SOLTO

para o Jorge Roque

Encontrá-lo aí mesmo, como se
pendurado no vazio. Desenredá-lo levemente
e puxar, procurando aquele ponto de tensão
sem, no entanto, o encontrar. Puxar mais e
mais, fervorosamente. Daí a nada
mais parece que é o fio que te puxa a ti.
E puxa, horrorizando-te, enquanto
imaginas que costura do teu mundo
agora se descose.

Diogo Vaz Pinto, "Nervo", Averno, 2011.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

SOBRE A ETERNIDADE

Perguntaste-me há quanto tempo
as folhas se levantam sem cair.
Falavas se calhar da eternidade sem querer,
da mesma forma inocente com que adormecias
ou pousavas o copo de vinho sobre a mesa.

A única forma encontrada
era a breve inocência das coisas
repousada na tua própria dúvida.

E eu tinha a certeza que não eras daqui,
como eu sou,
como ninguém é.

Verificados todos os silêncios.

António Quadros Ferro, "Um Pouco de Morte", Edição do Autor, 2009.