segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

A vertigem da volta

Árvore, árvore, árvore, poste de iluminação

- abranda, por favor.


Folhas a deixarem de ser folhas e ramos a deixarem de ser ramos para serem, juntos, pouco mais de uma distorcida lembrança daquele momento.

Árvore, árvore, árvore, o esbatimento num tom mais claro

Uma dança em “Paso Doble”. Baile servido àquele carro que rasga a noite crua sem que ele se parecesse importar com isso.


- papá, por favor pára.

- está calada. Já te disse para estares calada.

e a cegueira raivosa de ter perdido a filha há muito para alguém melhor que ele a servir de consciência. Uma mão a decidir a direcção e a outra a segurar um cigarro que arde ao seu próprio ritmo.

(e a cegueira raivosa a fazer malabarismo com as duas mãos)


-deixa-me sair.

A inocência dos oito anos a pedir por termo à vertigem.

- para quê? Para ires a correr ter com a tua mãe? O papá gosta muito de ti mas tem que fazer isto. Lembras-te quando roubaste o brinquedo do primo João? A mãe ficou triste contigo e explicou-te que não se podia pegar naquilo que não era nosso? Uns senhores maus fizeram o mesmo contigo. Roubaram-te de mim. Eu só estou a trazer-te de volta.


- então se me estás a devolver, porque choras tanto?

Esporadicamente, os faróis dos automóveis que seguiam em sentido inverso deixavam ver a cara riscada pelas lágrimas. Riscos de arrependimento por assustar assim que valia mais do que a sua vida. A consciência a servir de mesa a um braço de ferro entre a raiva e o arrependimento. O desempenho de tal partida empolgada era medido no acelerador do arrependimento e, tal como o fôlego de um asmático a subir uma colina, o ponteiro a perder a veemência da vingança e, suavemente, a desenhar um círculo no lado esquerdo do mostrador.


O auto rádio, que até aqui se limitava a servir de adereço à viagem adensando o ambiente entre obras de Mingues, Debussy e Verdi, cortava a tensão com a faca do cumprimento

“Boa noite, abrimos esta actualização noticiosa com uma informação de última hora. Houve um rapto de uma criança na zona da Grande Lisboa. Apesar de não se conhecerem muitos detalhes até à data, o principal suspeito é o seu próprio pai.…”


As colunas continuaram a ecoar o trabalho do pivô enquanto as placas a indicarem localidades espanholas deixaram de ser sinais de um passeio atribulado, a agitação lacrimal do papá, o que até ali era uma bola de confusão, agora começar a ser a

realidade numa metamorfose demasiada lenta para ambos tripulantes.


- papá, tu não me estás a devolver como eu fiz com o brinquedo do primo, tu estás-me a roubar como eu fiz com o brinquedo do primo.

E, mesmo sem se ver, o coração de quem roubava em vez de devolver transformado numa almofada de costureira. Os alfinetes, cem alfinetes, mil alfinetes, todos os alfinetes do mundo espetados de uma só vez. Cada um deles a serem lembranças do sofrimento que estava a infligir a quem lhe valia mais do que tudo. Cada um deles, a viatura a abrandar. Arrependimento, tanto. Ódio por ter colocado a vida de quem gosta tanto, tanto, tanto, em perigo.


Arrependimento, abrandamento

Choro, choro, ódio e o abrandar.


(e dentro o jogo de matraquilhos. O destino daquela viagem feito bola. não consigo ir mais longe, não consigo acelerar, não consigo, alfinetes como vudu. Não consigo nada que ela não mereça.)

- não consigo pisar mais acelerador, pé, perna, ordem de mim em vocês.

E parou. Carro e pensamento, tudo em parado no momento que assim o exigia.

- filhota, não te consigo roubar mais do que isto. Olha para mim, espero que me perdoes ter-te tirado o sossego. Não te consigo roubar mais do que o sossego.

Dois dias depois, após uma chamada para a polícia com voz de cão a correr na praia atrás de uma bola atirada pelo destino


Diálogos em que os interlocutores são o punho de quem pode e a face de quem não queria estar ali. O ritmo das conversas ali tidas era regido por um cheiro a bafio quase mastigável. Culpas atribuídas, processo alinhavado, nas primeiras visitas:

- foram estes os senhores que disseram que eu era da mamã?


Os senhores maus uma massa indefinida

- não filhota, não.

(árvore, árvore, árvore a passarem junto ao poste na memória de quem ainda não conseguiu esquecer)

- e agora, para onde queres ir?

A liberdade embrulhada como um rebuçado. Esta pergunta destino em aberto, era tudo o que ele queria ouvir quando a chave entrou na ignição, segundos antes de partir em direcção à fronteira do país, da sanidade, de tudo, de tudo, de tudo. Fronteira transposta, liberdade fora da pergunta.


- papá, posso-te tratar por pai?

******


pedro s. martins

(texto originalmente publicado a 30 de Dezembro, 2008.

2 comentários:

  1. Atenção a isto:
    "o principal suspeito recai sobre o seu próprio pai"

    O suspeito não recai sobre ninguém. Devias corrigir para: o principal suspeito é o seu próprio pai.

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