cobriu-lhe os seios de trevos, para dar sorte, e pintou-lhe as unhas de escarlate
na cama de deus dormirá, hoje, uma mulher bonita.
Renata Correia Botelho, "Avulsos, por causa", Língua Morta, 2010
sexta-feira, 29 de abril de 2011
Não se desfloram capões no sânscrito do dia, seja a questão columbófila o supremo fenómeno ou haja umas escadas a subir para o lado poeta dessa cidade perdida, agora entregue às lojas chinesas, onde nenhuma aurora há.
Amadeu Baptista, "O Ano da Morte de José Saramago", &Etc, 2010
A cada instante ladeio a malha entre dois passos na teia (que orbe!) duma aranha sesga. Por cântico fúnebre, apenas o silêncio audível; as notas fluem na aérea ausência de pauta. Dar a esta caligrafia a incisão de um dorso de camelo, bossa a bossa ondeando contra a face da lua. E em meu lábio deixar às aves as sílabas mais tenras.
Sebastião Alba, "A Noite Dividida", Assírio & Alvim, 1996
Na Primavera, os marmeleiros da Cidónia, regados pelas correntes dos rios, lá onde das Virgens está o puro jardim; e os pâmpanos a crescerem sob folhagens sombrias, rebentos de vinha. Mas para mim o amor não descansa em nenhuma estação; ardendo sob o relâmpago como o Bóreas da Trácia, lança-se de junto de Cípris com sedentas insânias, tenebroso, desavergonhado, e com força, de cima a baixo, sacode o meu espírito.
Desistir do rosto, dos propósitos, das palavras. Há sílabas assim. Com a vergonha do afecto emprestada ao desalinho das mesas.
Por ali, encenando a imobilidade, a rudeza de haver dor. Eu sei que não virás. Bebo por ti, sem ti, contra ti, com o coração no bengaleiro a fingir que não, não faz diferença.
E o pior é que até faz, por muito que ninguém o saiba.
a mancha negra do corpo, sobre a cama as mãos que o tempo, anónimo, fixou. No quintal, os carpinteiros juntam prancha a prancha com o som enquanto os cães esperam a fome, cheios de paciência. Lá dentro, o morto desenha o esquecimento e a casa fica impenetrável. Contra a porta, o vento junta folhas, terra, vespas secas. O vento e o seu gume. Os corvos na lixeira retomam a guerra em curtos voos que a fome desorganiza.»
Rui Nunes, "A Mão do Oleiro", Relógio D'Água, 2011.