terça-feira, 30 de dezembro de 2008

A vertigem da volta

(Coloco-vos aqui um escrito que não é poema. Podia ser, mas não é. A vertigem da volta é um conto que foi finalista num concurso brasileiro. É um pouco mais longo que o que têm lido até aqui, mas ainda assim peço-vos que o leiam até ao fim.)



Árvore, árvore, árvore, poste de iluminação

- abranda, por favor.


Folhas a deixarem de ser folhas e ramos a deixarem de ser ramos para serem, juntos, pouco mais de uma distorcida lembrança daquele momento.

Árvore, árvore, árvore, o esbatimento num tom mais claro

Uma dança em “Paso Doble”. Baile servido àquele carro que rasga a noite crua sem que ele se parecesse importar com isso.


- papá, por favor pára.

- está calada. Já te disse para estares calada.

e a cegueira raivosa de ter perdido a filha há muito para alguém melhor que ele a servir de consciência. Uma mão a decidir a direcção e a outra a segurar um cigarro que arde ao seu próprio ritmo.

(e a cegueira raivosa a fazer malabarismo com as duas mãos)


-deixa-me sair.

A inocência dos oito anos a pedir por termo à vertigem.

- para quê? Para ires a correr ter com a tua mãe? O papá gosta muito de ti mas tem que fazer isto. Lembras-te quando roubaste o brinquedo do primo João? A mãe ficou triste contigo e explicou-te que não se podia pegar naquilo que não era nosso? Uns senhores maus fizeram o mesmo contigo. Roubaram-te de mim. Eu só estou a trazer-te de volta.


- então se me estás a devolver, porque choras tanto?

Esporadicamente, os faróis dos automóveis que seguiam em sentido inverso deixavam ver a cara riscada pelas lágrimas. Riscos de arrependimento por assustar assim que valia mais do que a sua vida. A consciência a servir de mesa a um braço de ferro entre a raiva e o arrependimento. O desempenho de tal partida empolgada era medido no acelerador do arrependimento e, tal como o fôlego de um asmático a subir uma colina, o ponteiro a perder a veemência da vingança e, suavemente, a desenhar um círculo no lado esquerdo do mostrador.


O auto rádio, que até aqui se limitava a servir de adereço à viagem adensando o ambiente entre obras de Mingues, Debussy e Verdi, cortava a tensão com a faca do cumprimento

“Boa noite, abrimos esta actualização noticiosa com uma informação de última hora. Houve um rapto de uma criança na zona da Grande Lisboa. Apesar de não se conhecerem muitos detalhes até à data, o principal suspeito recai sobre o seu próprio pai…”


As colunas continuaram a ecoar o trabalho do pivô enquanto as placas a indicarem localidades espanholas deixaram de ser sinais de um passeio atribulado, a agitação lacrimal do papá, o que até ali era uma bola de confusão, agora começar a ser a

realidade numa metamorfose demasiada lenta para ambos tripulantes.


- papá, tu não me estás a devolver como eu fiz com o brinquedo do primo, tu estás-me a roubar como eu fiz com o brinquedo do primo.

E, mesmo sem se ver, o coração de quem roubava em vez de devolver transformado numa almofada de costureira. Os alfinetes, cem alfinetes, mil alfinetes, todos os alfinetes do mundo espetados de uma só vez. Cada um deles a serem lembranças do sofrimento que estava a infligir a quem lhe valia mais do que tudo. Cada um deles, a viatura a abrandar. Arrependimento, tanto. Ódio por ter colocado a vida de quem gosta tanto, tanto, tanto, em perigo.


Arrependimento, abrandamento

Choro, choro, ódio e o abrandar.


(e dentro o jogo de matraquilhos. O destino daquela viagem feito bola. não consigo ir mais longe, não consigo acelerar, não consigo, alfinetes como vudu. Não consigo nada que ela não mereça.)

- não consigo pisar mais acelerador, pé, perna, ordem de mim em vocês.

E parou. Carro e pensamento, tudo em parado no momento que assim o exigia.

- filhota, não te consigo roubar mais do que isto. Olha para mim, espero que me perdoes ter-te tirado o sossego. Não te consigo roubar mais do que o sossego.

Dois dias depois, após uma chamada para a polícia com voz de cão a correr na praia atrás de uma bola atirada pelo destino


Diálogos em que os interlocutores são o punho de quem pode e a face de quem não queria estar ali. O ritmo das conversas ali tidas era regido por um cheiro a bafio quase mastigável. Culpas atribuídas, processo alinhavado, nas primeiras visitas:

- foram estes os senhores que disseram que eu era da mamã?


Os senhores maus uma massa indefinida

- não filhota, não.

(árvore, árvore, árvore a passarem junto ao poste na memória de quem ainda não conseguiu esquecer)

- e agora, para onde queres ir?

A liberdade embrulhada como um rebuçado. Esta pergunta destino em aberto, era tudo o que ele queria ouvir quando a chave entrou na ignição, segundos antes de partir em direcção à fronteira do país, da sanidade, de tudo, de tudo, de tudo. Fronteira transposta, liberdade fora da pergunta.


- papá, posso-te tratar por pai?

******


pedro s. martins



13 comentários:

  1. Obrigado pelo seu convite. Infelizmente, estou com obras em casa e por isso tenho pouco acesso à net. A partir da próxima semana, tentarei investigar o seu blogue com mais atenção.

    Abraço

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  2. Ano novo,vida nova!
    Que realize todos os seus sonhos, que tenha muito amor pra dar e receber, que nunca falte uma palavra de carinho de seus amigos, mesmo que virtualmente e que seja sempre muito feliz!
    Feliz 2009 pra ti!
    bjo carinhoso,
    Branca.

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  3. belíssimo conto,

    abraços.

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  4. Fizeste bem em desengavetar os teus escritos.
    Esles precisasm de respirar.
    Gostei do que li, voltarei, por certo.
    Abraço.

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  5. Quando nos perdemos na liberdade, eis que ficamos presos ao propósito de entende-la.
    Cadinho RoCo

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  6. Nunca é demais escrever sobre a Liberdade. Interessante. Obrigado.

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  7. Um belo blog cheio de arte e bem escrever... coisa que não sei, pois a minha arte é mesmo fotografia :-)
    Parabéns pelo blog que aqui tem Pedro.
    Feliz ano de 2009 para si e que ele te traga o que mais desejas principalmente saúde, amor e alegria.
    Um forte abraço,
    Nuno de Sousa

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  8. Desejo-te tempo, tempo para a vida.
    Desejo-te tudo o que tu quiseres!

    um bjo e Bom Ano!

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  9. Convido a visitar www.kronospoesis.blogspot.com

    Boas entradas!

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  10. uma estória a memorizar...outras se seguirão


    bom início dos trezentos e sessenta e cinco dias que se nos avizinham

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  11. Gostei do seu texto. Real, incisivo.
    Desejando que o ano 2009, faço aqui um convite para que venha fazer-me uma visita onde fiz uma postagem especialmente para o dia de hoje, pela passagem de ano às pessoas que tem a minha estima, para as que visitam meu blog, agradecendo de coração suas presenças.
    Tudo de bom eu desejo para sua vida, de coração.
    FELIZ ANO NOVO!!
    Beijos

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  12. Pedro

    Venho agradecer-TE a visita, feliz por a ter tido.

    Acabo de passar os olhos pela tua obra.

    É de lança os olhos que lanço.

    Porque estou pasmado com o teu Ser.

    Volta, vezes sem conta, para pernoitar.

    E deixo-TE um abraço sentido.

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