terça-feira, 27 de janeiro de 2009

viagem

O sinal sonoro que indica que as portas vão fechar traz consigo um trio de senhoras bem-postas. Cansadas da vida, umas das outras e da passada veloz que tiveram de empregar para apanhar aquele que já estava para deixar a estação, a cada palavra uma injecção de oxigénio, como um peixe fora de água que come ar de garfo e faca e que saboreia cada garfada como se fosse a última.

(não morras já, senhora do meio. Preciso de ti para que me contes o que te aconteceu ao pé)

Ao arrancar o sorriso de uma missão cumprida. – estava a ver que não o apanhávamos – e a continuação de um jogo entre goladas de ar e palavras soltas que, no final, tentavam ser uma frase com sentido.

- já te disse que não posso andar tão depressa. Estás farta de o saber.

(abençoado ar que, mesmo poluído, serves para minha existência)

- mas se não apanhássemos este, não sei quando chegaria o próximo.

- agora dói-me o pé – e interrogada sobre qual era, cortando a pergunta a meia responde – o esquerdo, aquele que tiveram que amputar metade. Dói-me.

E metade o pé picotado pelo caminhar da vida. Orgulho a dobrar por ainda ser capaz de apanhar um transporte à beira da partida. A chuva que não molha, criar uma camada de brilho adicional à vida de quem a apanha de cabeça, a deixa formar bolhas brilhantes na roupa e só a sente quando beija ao de leve os ossos, era sinal que o verão se tinha despedido para já.

- ….e a rapariga que se matou só tinha catorze anos. Sim, feitos há coisa de duas, três semanas.

(suicídio só depois dos 20 e com autorização do executante)

- é esta a juventude que temos. A vida apressa-os e leva-os a isto.

E duas dezenas de gotas uniram-se. Criaram uma bolha maior do lado de fora da janela e, em uníssono, desenharam uma linha de água sobre o vidro molhado. De um lado ao outro. Tudo criado com uma exactidão desafiadora da régua mais direita. Facto curioso, já que no inicio desta viagem aquosa pelo vidro embaciado estava o trio de senhoras criadas, educadas e decepadas pela vida, enquanto no outro lado, duas raparigas jovens (com idade suficiente para darem um beijinho de boa noite à vida sem que fosse cedo demais) escutavam o julgamento.
Uma de mochila às costas, outra de mala no chão. Ambas com as orelhas afiadas e arrebitadas – não fosse a distracção do rio que nos passava por baixo das coxas e ia jurar que as pontas das orelhas roçavam o tecto.

(é esta a juventude que temos)

Os dois pares de auscultadores que ambas levavam crivados nos ouvidos deviam ir a fazer de disfarce para a atenção prestada à conversa das senhoras.

Por entre olhares e sorrisos cúmplices, o soltar de um suspiro. Por entre gerações separadas por um risco que um grupo de gotas resolveu desenhar, ideias tão diferentes que chegavam a ser absurdas. E a chuva a cair lá fora.

A próxima paragem era a quarta que marcava o simultâneo convívio entre gerações. A rapariga que tinha a mochila às costas como uma mãe para um filho

- precisas de ajuda a levantar-te

E enquanto erguia a primeira de duas canadianas do chão, passa os dedos pelo desenho que tinha feito na janela e responde que não. Faltava-lhe a perna esquerda e a habilidade de andar como uma rapariga (pessoa) na idade do suicídio. A sapatilha no chão molhado num grito. A mala na mão da amiga que já levava a mochila às costas e a frase que tinha sido meia apagada do vidro.
Sentei-me onde elas saíram. Não era totalmente perceptível, mas pareceu-me ler “não existe idade para perdermos. Seja uma amiga, meio pé ou uma perna.”
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pedro s. martins

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