(Para a Carolina, pirata dos terramotos)
A minha rua abre-se
em rondas de vizinhos
que quase sempre estão nos pátios
a atirarem palavras
uns aos outros. Do início da rua
à minha casa é sempre um festim
de murmurações que vão da rotina tresloucada
que o abade exerce diariamente
(quando não está ao “serviço do Senhor”)
à listagem das amantes
do Cardoso electricista, do Américo do talho,
e daquele que ninguém sabe muito bem que é, fiscal
na câmara e porco de língua.
Quase nunca conversas directas, apenas
palavras teleféricas entre o lado
solarengo (lado esquerdo, quem desce) e o lado
sombrio dos paralelos artesanalmente enfileirados
por um cantoneiro há anos. Às vezes,
em vez da raiva que sinto por insistirem
naqueles desrazoados, apetece-me parar, encostar
a um dos muros que limitam cada jardim,
e no, limite da impaciência,
pedir-lhes novas palavras para os poemas – como vizinho,
acho que é um direito que me assiste.
Entre rondas de “vai a pé?”, “tenha cuidado que este
frio não está para brincadeiras?” ou o cortês “até já, vizinho”, ouvi uma palavra
que se encostou aos meus ouvidos sem antes
se ter esfarelado na pura coscuvilhice:
“engrunhidas”.
Sei que vão passar meses sem ouvir algo
útil novamente, mas não me importo, pois
durante esse tempo terei as mãos demasiado
engrunhidas
para escrever novos poemas.
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pedro s. martins
Gostei muito deste poema de um quotidiano que todos conhecemos. Mas só se for o vento que nos inspire...
ResponderEliminarBeijos.
E são estes vizinhos que provocam muito vento.
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