segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Rua ao vento

(Para a Carolina, pirata dos terramotos)

A minha rua abre-se

em rondas de vizinhos

que quase sempre estão nos pátios

a atirarem palavras

uns aos outros. Do início da rua

à minha casa é sempre um festim

de murmurações que vão da rotina tresloucada

que o abade exerce diariamente

(quando não está ao “serviço do Senhor”)

à listagem das amantes

do Cardoso electricista, do Américo do talho,

e daquele que ninguém sabe muito bem que é, fiscal

na câmara e porco de língua.


Quase nunca conversas directas, apenas

palavras teleféricas entre o lado

solarengo (lado esquerdo, quem desce) e o lado

sombrio dos paralelos artesanalmente enfileirados

por um cantoneiro há anos. Às vezes,

em vez da raiva que sinto por insistirem

naqueles desrazoados, apetece-me parar, encostar

a um dos muros que limitam cada jardim,

e no, limite da impaciência,

pedir-lhes novas palavras para os poemas – como vizinho,

acho que é um direito que me assiste.


Entre rondas de “vai a pé?”, “tenha cuidado que este

frio não está para brincadeiras?” ou o cortês “até já, vizinho”, ouvi uma palavra

que se encostou aos meus ouvidos sem antes

se ter esfarelado na pura coscuvilhice:

“engrunhidas”.


Sei que vão passar meses sem ouvir algo

útil novamente, mas não me importo, pois

durante esse tempo terei as mãos demasiado

engrunhidas

para escrever novos poemas.

******

pedro s. martins

2 comentários:

  1. Gostei muito deste poema de um quotidiano que todos conhecemos. Mas só se for o vento que nos inspire...
    Beijos.

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  2. E são estes vizinhos que provocam muito vento.

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